ÉS TU QUEM PRECISA CONVERSÃO

14-03-2011 16:46

És tu quem precisa conversão! Tu és este homem!
2009-03-13 07:38:00
 

-  Que parte temos nós (agora entendo “nós” no sentido de nós que aqui estamos, nós os crentes) neste tremendo requisitório que ouvimos contra o pecado? Atendo-nos a tudo o que foi dito até agora, pareceria de fato que nos assiste, mais do que a outrem, o papel de acusadores. Mas ouçamos bem o seguinte. Eu disse acima que o Apóstolo, com suas palavras, havia arrancado a máscara do rosto do mundo e também do nosso, e chegou o momento de indagar como é que a palavra de Deus leva a cabo esta segunda e mais difícil operação.


 A Bíblia narra o seguinte fato: O rei Davi cometera um adultério; para encobri-lo, fez morrer o marido legítimo, de sorte que, em tais circunstâncias, tomar a mulher por esposa poderia certamente parecer, por parte do rei, um ato de generosidade para com o soldado morto por ele em combate. Um verdadeiro encadeamento de pecados. Então apresentou-lhe o profeta Natã, enviado por Deus. e narrou-lhe uma parábola (sem que o rei soubesse que era uma parábola). Havia na cidade — disse — um homem riquíssimo que tinha rebanhos de ovelhas, e também havia um pobrezinho, dono de uma só ovelhinha que lhe era muito cara, que lhe propiciava o sustento e dormia com ele... Chegou à casa do rico um hóspede e ele, poupando as próprias ovelhas, apoderou-se da ovelhinha do pobre e mandou matá-la para prover a mesa do hóspede.

 Ao ouvir tal história, desfechou a ira de Davi contra tal homem e disse: “Quem fez isto merece a morte!” Então Natã, interrompendo subitamente a parábola, disse a Davi: “Tu és este homem!” (cf. 2Sm 12,1ss). O mesmo faz conosco o apóstolo Paulo. Depois de nos ter induzido a uma justa indignação e horror à impiedade do mundo, passando do capítulo primeiro ao segundo da sua carta, como se voltasse de golpe contra nós, ele nos repete: “Tu és este homem! Portanto és inescusável — diz — quem quer que sejas, ó homem que julgas, porque enquanto julgas os outros condenas a ti mesmo; de fato, tu que julgas fazes as mesmas coisas. Contudo, nós sabemos que o juízo de Deus é conforme à verdade contra os que cometem tais coisas.

 Talvez penses, ó homem que julgas os que cometem tais ações e entretanto fazes o mesmo, escapar à ira de Deus (Rm 2,1-3). A reaparição, neste ponto, do termo “inescusável” (anapologetos), usado acima para os pagãos, não deixa dúvida acerca das intenções de Paulo. Enquanto julgavas os outros — diz ele — condenavas a ti mesmo. O horror que concebestes contra o pecado, é hora de voltá-lo contra ti.

 O “que julga” revela-se, no decorrer do capítulo segundo, como sendo o judeu; mas aqui ele tem a acepção de tipo. “Judeu” é o não-grego, o não-pagão (cf. Rm 2,9-10); é o homem piedoso e crente que, fiado em seus princípios e possuidor de uma moral elevada, julga o resto do mundo e, julgando-o, sente-se em segurança. Neste sentido, “judeu” é cada um de nós. Dizia bem Orígenes que, na Igreja, quem deve ser posto na mira dessas palavras do Apóstolo são os bispos, os presbíteros e os diáconos, isto é, os guias, os mestres (cf. Orígenes, Comm. in ep. Rom.).

 O próprio Paulo sofreu este impacto quando de fariseu se tornou cristão e, por isso, pode agora falar com tanta segurança e apontar aos crentes o caminho para sair do farisaísmo. Ele desmascara a estranha e freqüente ilusão das pessoas piedosas e religiosas de se manterem a salvo da cólera de Deus, só por terem um conceito claro do bem e do mal, conhecerem a lei e, dada a ocasião, saberem aplicá-la aos outros, enquanto, no que se lhes toca, pensam que o privilégio de estar da parte de Deus ou, de qualquer modo, a “bondade” e a “paciência” de Deus, que bem conhecem, abrirão para eles uma exceção.

 É como se, enquanto um pai está censurando um dos filhos por uma transgressão qualquer, um outro filho, igualmente culpado, imaginasse provocar a simpatia do pai e eximir-se da censura, simplesmente pondo-se também a ralhar o irmão em voz alta, enquanto o pai esperava algo bem diferente, isto é, que, ouvindo-o censurar o irmão e vendo a sua bondade e paciência para com ele, corresse a atirar-lhe aos pés confessando-se também réu da mesma culpa e prometendo emendar-se: Ou desprezas a riqueza da sua bondade, da sua tolerância e da sua paciência, sem reconhecer que a bondade de Deus te impele à conversão? Tu, porém, com tua dureza e teu coração impenitente, acumulas cólera sobre ti para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus (Rm 2,4-5).

 “Não percebes que a bondade de Deus te está impelindo à conversão? Tu, com a tua dureza de coração, estás acumulando cólera sobre ti...!” Que terremoto, no dia em que te deres conta de que a palavra de Deus está falando assim precisamente para ti, e que aquele “tu” és tu mesmo! Sucede como quando um jurista está todo ocupado a analisar uma famosa sentença de condenação emitida no passado e que faz autoridade, quando, de improviso, observando melhor, percebe que tal sentença se aplica também a ele: de repente muda o seu estado de ânimo e o coração deixa de pulsar com segurança. Aqui, a palavra de Deus está empenhada num legítimo tour de force; ela deve inverter a situação daquele que a está tratando. Aqui, não há escapatória: forçoso é “desabar” e dizer como Davi: Pequei! (2Sm 12,13). Caso contrário, sobrevem-lhe um ulterior endurecimento de coração e a impenitência corrobora-se. Da escuta desta palavra de Paulo sai-se ou convertido ou empedernido.

 Mas qual é a acusação específica que o Apóstolo lança contra os “piedosos”? A — diz ele — de cometer “as mesmas coisas”? No sentido de “materialmente” as mesmas? Também isso (cf. Rm 2,21-24); mas sobretudo as mesmas coisas quanto à substância, que é a impiedade e a idolatria. Há uma idolatria larvada, que está de contínuo em ação no mundo. Se a idolatria é “adorar a obra das próprias mãos” (cf. Is 2,8; Os 14,4), se idolatria é “colocar a criatura em lugar do Criador”, eu sou idólatra quando coloco a criatura — a minha criatura, a obra das minhas mãos — no lugar do Criador.

  A minha criatura pode ser a casa ou a igreja que estou construindo, a família que educo, o filho que pus no mundo (quantas mães, mesmo cristãs, sem se dar conta, fazem do filho, especialmente se único, seu deus!); pode ser o trabalho que faço, a escola que dirijo, o livro que escrevo... Há além disso, o ídolo-mor que é o meu próprio “eu”. De fato, no fundo de toda a idolatria encontra-se a autolatria, o culto se si mesmo, o amor próprio, o pôr-se no centro e no primeiro lugar do universo, sacrificando-lhe todo o resto. A “substância” é sempre a impiedade, o não glorificar a Deus, mas sempre e só a si mesmo, o fazer servir até o bem, até o serviço que prestamos a Deus — mesmo a Deus! —, para o próprio êxito e a própria afirmação pessoal.

 De fato, se é verdade que tão freqüentemente os que defendem os direitos do homem na realidade defendem os próprios direitos, não é menos verdade que, mui freqüentemente, até os que defendem os direitos de Deus e da Igreja fazem outro tanto, isto é, defendem, na verdade, a si mesmos e os próprios interesses, e é por isso que também hoje “o nome de Deus é blasfemado por nossa causa entre os pagãos” (Rm 2,24). O pecado que S. Paulo denuncia nos “judeus” ao longo de toda a carta é propriamente este: procurar uma justiça própria, uma glória própria e procurar obtê-la até da observância da lei de Deus.

 Talvez a esta altura, entrando em mim mesmo, esteja eu pronto a reconhecer a verdade, ou seja, que até agora vivi “para mim mesmo”, que também eu estou implicado, embora de modo e em grau diferente, no mistério da impiedade. O Espírito Santo me “convenceu de pecado”. Começa para mim o milagre sempre novo da conversão. Que fazer nesta situação delicada? Abramos a Bíblia e entoemos também nós o “De profundis”: Das profundezas clamo a ti, Senhor (Sl 130). O “De profundis” não foi escrito para os mortos, mas para os vivos; o “profundo” do qual o salmista eleva seu grito não é, de per si, o do Purgatório, mas o do pecado: Se consideras as culpas, Senhor, quem poderá subsistir?

 Está escrito que Cristo “foi em espírito anunciar a salvação também aos espíritos que aguardavam na prisão” (cf. 1Pd 3,19) e um padre antigo comentava este fato dizendo: “Quando ouvires dizer que Cristo, tendo descido ao Hades, libertou as almas que ali eram mantidas prisioneiras, não penses que estas coisas estejam muito distantes das que se realizam ainda hoje. Crê-me, o coração é um sepulcro” (Macário Egípcio, De libert. mantis). Nós estamos agora espiritualmente na situação dos “espíritos encarcerados” que aguardavam no Hades a vinda do Salvador e que, nos ícones, são vistos estender as mãos desesperadamente para agarrar a destra de Cristo que vem, com a sua cruz, arrancá-los do cárcere. Elevemos também nós o grito do profundo cárcere do nosso “eu”, em que somos mantidos prisioneiros.

 O salmo com que estamos rezando está todo orvalhado de confiante esperança e expectativa: Eu espero no Senhor... A minha alma espera pelo Senhor mais do que a sentinela pela aurora... Ele remirá Israel de todas as suas culpas. Já sabemos que o socorro existe, que é um remédio para o nosso mal, porque “Deus nos ama” e por isso, embora sacudidos pela palavra de Deus, permaneçamos serenos e digamos com confiança a Deus: Tu não abandonarás a minha vida na tumba, nem deixarás que o teu santo veja a corrupção (Sl 16,10).


 


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por Frei Raniero Cantalamessa - ofmcap, Pregador do Vaticano